Compartilhamos com os fiéis de Ocara, este texto de Dom Henrique Soares com o TEMA: Derramar a alma diante do Senhor.
1. “Com
a alma desolada, suspirando e chorando, comecei esta prece de lamentação: ‘Tu
és justo, Senhor!’” (v.1s); “Estendendo as mãos para a janela, orou assim:
‘Bendito sejas Tu, Deus de misericórdia!’” (v.11) O verdadeiro crente,
reza em todas as ocasiões da vida, como diz o Apóstolo: “Orai sem
cessar” (1Ts 5,17). Mas, o que é rezar? Santa Teresa deu
uma definição que se tornou clássica: "Rezar é tratar de amor com Quem
sabemos que nos ama". Sim, é verdade. Mas, biblicamente, a oração é bem
mais que isso. Não se trata primeiramente de conversar com Deus, mas de
colocar-se diante Dele, caminhar na Sua presença, aberto para Ele em toda a
nossa existência. Na oração, o sujeito é primeiramente Deus, e não nós mesmos.
É Ele quem fala, quem fala ao Seu Povo, quem me fala; é Ele quem toma a
iniciativa: “Ouve, Meu Povo, Eu te conjuro; oxalá Me ouvisses, Israel!
(Sl 81/80,9). Rezar é, antes de tudo, uma atitude de abertura e escuta
diante do Senhor que vai falar: “O primeiro mandamento é:
Ouve, ó Israel...” (Mc 12,29). A oração só começa e somente é possível
quando nos colocamos nesta atitude de total disponibilidade ante o Senhor, na
obediência e no reconhecimento de que Ele é o Senhor: “Quero ouvir o
que o Senhor irá falar...” (Sl 85/84,9); “Ah! Se Meu povo Me escutasse, se
Israel andasse sempre em Meus caminhos... (Sl 81/80,14).
Reza
de verdade quem de verdade não fala primeiro ao Senhor, mas primeiro se dispõe
a escutá-Lo: “Fala, Senhor, que Teu servo escuta” (1Sm 3,10). A
primeira súplica de quem deseja rezar de verdade é esta: Senhor, “dá a
Teu servo um coração que escuta” (1Rs 3,9).
2.
Mas, onde se pode escutar o Senhor falar? Olhe bem! Pode ser que pensando
escutá-Lo, só escutemos a nós mesmos, aos nossos caprichos, ao nosso próprio
coração. Como escutá-Lo de verdade? Primeira e fundamentalmente, na Sagrada
Escritura, lida-escutada num espírito de oração, de disponibilidade, de
gratuidade. Nunca deveríamos ler-escutar a Palavra de Deus simplesmente para
encontrar respostas práticas e imediatas. Ela deve ser frequentada
gratuitamente, sem outra pretensão que não aquela de um coração que deseja ouvir
o seu Amado, Aquele que o enche de vida, paz e serena alegria: “Os
preceitos do Senhor são retos, alegram o coração; o mandamento do Senhor é
claro, ilumina os olhos. Suas palavras são mais doces que o mel escorrendo dos
favos" (Sl 18/19,9-10.11b). Ler-ouvir a Escritura é ouvir o
Coração de Deus; por isso ela deve ser lida com um espírito de fé e amor, um
espírito de total confiança e disponibilidade em relação ao Senhor. A
primeiríssima atitude de quem reza não é falar - e muito menos tagarelar diante
de Deus: é escutar! Leia Mt 6,7-8 e Lc 10,38-42.
Esta
frequência à Palavra, esta escuta amorosa e fiel do Coração de Deus, vai nos
fazendo conhecer e admirar tudo quanto Ele fez, o que Ele falou, a Sua
fidelidade, o Seu amor, o Seu modo de tratar o Seu Povo, o excesso da Sua
misericórdia ao nos enviar o Filho Jesus e nos divinizar com o Espírito Santo,
fazendo-nos verdadeiramente participantes da Sua Vida divina. Assim, o fiel vai
conhecendo o Coração de Deus, vai se encantando com o Senhor a aprendendo a
Nele confiar e a Ele se abandonar. A escuta vai nos fazendo amigos de Deus,
homens e mulheres de Deus, que começam a sentir o Seu Coração divino e a
compreender os modos do Senhor. Esta escuta perseverante e fiel da Escritura,
irá ensinando a escutar o apelo de Deus, Seu desígnio para nós, na palavra de
Igreja, nos acontecimentos da vida, nos apelos dos irmãos e em tudo que nos
aconteça. Aí sim: tudo irá se tornando uma palavra do Senhor para nós. Mas,
estejamos atentos: somente a partir da Palavra em sentido estrito, que é a
Escritura Sagrada, aprenderemos a discernir as palavras de Deus nas outras
realidades da vida. Sem partirmos da Escritura, escutaremos nas outras ocasiões
somente a nós mesmos e nossos caprichos. Reze o Sl 119/118,105-112
3.
A atitude de escuta suscita no nosso coração uma resposta, cheia de confiança,
admiração e amor, que brota do mais profundo de nós. Então, cantaremos,
agradeceremos, louvaremos, intercederemos, pediremos ou, simplesmente,
choraremos: "Eu derramo minha alma perante o Senhor" (1Sm
1,15b), como disse Ana, a mãe de Samuel. Agora sim: a escuta
provocou a resposta; resposta dócil, obediente, amorosa, adorante, admirada!
Então, estabelecer-se-á o diálogo que é fecundo, que não é tagarelice, que é
"tratar de amor com quem sabemos que nos ama". Deus falou e nós
respondemos com a palavra, com o afeto, com o louvor, com as lágrimas, com o
silêncio contemplativo, com a vida.
4.
Cuidado! Muitos pensam na oração como uma arte para conseguir de Deus aquilo
que queremos. Trata-se de uma visão pobre e enganada da oração. Nós viemos de
Deus, por Ele e para Ele fomos criados e em tudo dependemos Dele. Ele é nossa
realização, nossa plenitude, a saciedade do nosso coração. Somente abertos para
Ele, vivendo em comunhão com Ele, seremos felizes. Mas, temos enorme
dificuldade em perceber isso, em viver essa realidade. Nossa tendência é viver
a vida centrados em nós mesmos, como se fôssemos o umbigo do mundo e o centro
do universo: julgamos tudo a partir de nós mesmos, analisamos tudo segundo
nossos interesses e perspectivas, colocamos nossa segurança e nossa apoio em
tantas coisas, em projetos, em pessoas, em situações que julgamos importantes
para nós; procuramos ancorar nossa existência em realidades tão passageiras e
temos a ilusão de sermos autossuficientes, de pensarmos que a vida é nossa de
um modo absoluto. Ora, viver assim é viver inautenticamente, é viver uma
ilusão: a ilusão de ser Deus! E todos nós temos esta tendência de absolutizar o
que é relativo e relativizar o que é absoluto. É nossa primeira tentação:
“Sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal” (Gn 3,5)... Pois bem, a
oração tem o efeito de nos colocar continuamente diante de Deus, único
Absoluto. Quando rezamos, vamos deixando que Deus vá Se tornando, de fato,
Alguém, na nossa existência; não uma ideia, mas uma Pessoa; não algo, mas
Alguém! Vamos, aos poucos, aprendendo a ver-nos e ver o mundo à luz de Deus; na
luz Dele, vamos começando de verdade a ver a luz. Deus vai Se tornando o centro
da nossa vida e vamos, pouco a pouco, nos relativizando a Deus e colocando tudo
em relação a Ele e em função Dele. A oração, portanto, tira-nos do centro e nos
faz perceber que Deus é o verdadeiro centro e que nós somos relativos,
relativos a Ele. A oração ensina-nos a colocar Deus no lugar de Deus, nos faz
deixar que Deus seja Deus de verdade em nós e para nós. Vamos percebendo com
todo o nosso ser, que nossa existência dependem Dele e somente Nele seremos nós
mesmos porque seremos aquilo para que fomos criados. Deixando que Deus seja o
centro, ficamos livres do enorme peso que nos tornamos para nós mesmos, com
nosso instinto desarrumado de autoafirmação compulsiva. Pensemos no nosso
terrível fardo: a tendência de nos afirmar diante dos outros em tudo: na vida
afetiva, profissional, social, econômica... A tendência de controlar nosso
destino e o dos outros... É um verdadeiro inferno! A oração nos liberta disso
tudo e nos amadurece. O verdadeiro orante sabe que sua vida está nas mãos de
Deus e tem valor porque é valiosa aos olhos do Altíssimo. O orante não é um
tolo passivo e alienado, mas alguém que sabe que o Senhor Deus tem um projeto
para sua vida e para a vida do mundo e, assim, constrói responsavelmente sua
existência e procura melhorar a realidade à sua volta, mas sem estresse, sem
aquela tensão de quem não vê senão a disputa que é a vida, com a concorrência,
os acasos e a competição louca do cada um por si. Quem reza, compreende que,
para além de tudo, há Alguém amoroso, providente, justo que é parceiro no nosso
caminho. É interessante, mas o verdadeiro amigo de Deus, ao mesmo tempo em que
se relativiza, percebe o seu valor diante de Deus, sente-se amado, aconteça o
que acontecer e, assim, encontra forças para enfrentar os desafios da vida e
vencê-los. Agora, pense um pouco: Como anda a sua vida de oração? Como você
compreende a realidade da oração e sua necessidade e sentido? Releia este
número 4 da meditação.
5.
Vamos adiante! Note que a oração não tem como finalidade primeira conseguir de
Deus as coisas, mas nos fazer perceber a verdadeira realidade: quem é Deus e
quem somos nós, como aquela doce e famosa pergunta orante de São Francisco de
Assis: “Senhor, quem és Tu e quem sou eu? Tu és o meu Tudo; eu sou o Teu
nada!”. Assim fazendo, faz-nos viver uma existência autêntica e feliz. Somente
a oração nos faz compreender o verdadeiro sentido de todas as coisas, porque
começamos a ver da perspectiva de Deus e não da nossa própria. Sem ela,
confundiremos Deus conosco mesmos, Sua vontade com a nossa. Sem rezarmos,
perderemos de vista o sentido do que nos acontece, exaltando-nos de modo bobo
quando as coisas nos ocorrem favoravelmente e nos prostrando de modo infantil
quando um desastre atinge nossa vida. Portanto, não há modo de viver de verdade
como crente, de ser alguém aberto para o Transcendente, sem a capacidade de
rezar. Se pensarmos que o cristianismo não é uma ideologia, uma teoria sobre
Deus, mas uma relação viva e dinâmica com Ele, então poderemos perceber que de
modo algum se pode ser cristão sem o exercício contínuo e perseverante da
oração. Por isso, os místicos e sábios cristãos sempre advertiram que ninguém
nos mostre outro caminho para Deus que não a oração. Sem ela, todo o resto cai
por terra na nossa relação com o Senhor. Nem uma boa ação que fizéssemos, nem a
maior obra de caridade que executássemos seriam realmente por amor a Deus fora
do terreno da oração. Poderíamos, sem rezar, fazer, no máximo, obras de
filantropia, como os clubes de serviço ou obras motivadas por uma ideologia,
como os partidos políticos e as ONGs, mas nunca obras realmente cristãs.
--> Reze o Salmo 119/118,57-64 e como lectio divina, leia Tb 3,1-6.11-17.
FONTE: https://visaocristadomhenrique.blogspot.com/2020/03/retiro-quaresmal-20209-felizes-aqueles.html
Este texto foi lido durante o Programa Sintonia Católica (Ocara FM 104,9) no dia 12 de março.